Primeiro que o argumento apresentado não me parece ser nem um argumento de verdade:
"A meu ver, qualquer tratamento desigual que leve em consideração critérios raciais pode acabar gerando uma maior discriminação."
O sentido da palavra discriminar é exatamente "diferenciar", dar "tratamento desigual". Quando se fala em "discriminação racial" geralmente se quer referenciar o fato de que a situação dos indivíduos na sociedade é desigual segundo um critério de raça. O problema racial no Brasil existe, os mais pobres são quase todos negros ou pardos, os mais ricos são todos brancos. A participação do negro na população universitária não corresponde nem de longe à sua parcela na população total. O degrau salarial entre o que é recebido por negros e brancos é imenso e a desigualdade existe até mesmo se compararmos apenas negros e brancos ocupando um mesmo cargo. Estou no meu trabalho agora, não há nenhum negro no ambiente, mas existem japoneses, que correspondem a uma parcela populacional infinitamente menor.
A desigualdade existe por um motivo óbvio, os brancos vieram ao Brasil como colonos livres, quando não como representantes dos interesses imperias da metrópole, os negros vieram como escravos. A dívida histórica com os negros não foi quitada, pouca coisa mudou na vida dos negros ao final da escravidão. Os escravos, que não tinham recebido educação alguma e não possuiam bens para iniciar vida nova, foram expulsos da única habitação disponível - a senzala - para os barracos que começaram a surgir nas periferias. Hoje grande parte de seu descendentes se amontoam em condições semelhantes nos mesmo cortiços e favelas. O trabalho braçal que realizavam antes da "libertação" era o mesmo único disponível, quando havia algum disponível, pois, após a abolição da escravidão, houve um maciço emprego de mão de obra branca colona assalariada. Nada foi feito até hoje para remediar esta situação, que se reproduz geração após geração, de forma que o negrinho que engraxa os sapatos de um banqueiro branco é provável tataraneto de um escravo da fazenda de café do tataravô do banqueiro.
Tudo isso tem um efeito terrível no subconsciente da sociedade. Todo o tempo em que branco foi identificado como o superior, o chefe, o livre, o rico representante da metrópole enquanto o negro era sempre o escravo, o subalterno, o inferior, o pobre, etc. serviu para que se entranhasse em nossas percepções a noção de que "branco" é melhor que "negro": Cabelos lisos são considerados belos, cabelos pixaim são considerados feios e devem ser alisados com "chapinha"; olhos azuis ou verdes são belos; narizes afilados são "belos", narizes largos são "feios". É necessário remediar isso. É necessário remover esta ordem inconsciente de valores que diz que o negro é feio, mostrando a beleza que pode haver no cabelo pixaim, nos olhos negros, no nariz largo, na pele escura. Só que, se esperarmos que os meios de comunicação, os publicitários, enfim, os brancos ricos do Brasil, façam isso por livre e espontânea vontade, vamos morrer esperando. Infelizmente é preciso forçá-los e assim construirmos um novo padrão estético, menos racista e menos elististas (porque no fundo tudo isso se mistura, se os negros fossem a elite e o brancos os ex-escravos pobres todo mundo faria tratamento para deixar o cabelo pixaim, mas não é assim).
Quanto ao acesso à universidade: é óbvio que a solução perfeita seria termos uma educação básica igualitária e de qualidade e etc. Mas não a temos e não sabemos quando a teremos, se é que um dia teremos...
Não podemos, portanto, esperar de braços cruzados a solução ideal. As cotas nas universidades são, sim, um solução imediata, concreta, material para o problema do acesso ao ensino superior pelos negros (e eu prefiro qualquer solução concreta a qualquer abstração). O programa de cotas é o tipo de ação que ao longo das gerações vai ajudando a solucionar o problema, pois é possível que os netos ou bisnetos dos cotistas de hoje venham a ter oportunidades de educação e de acesso a bens e serviços que provavelmente lhes seriam negados se seu avós ou bisavós não pudessem ter se tornado advogados, professores, engenheiros...
O argumento de que cotistas não têm condições de cursar a universidade também é falso, as maiores médias do ano passado na UFRJ foram de cotistas.
Sou a favor, também, das cotas em empresas, que não seriam necessárias se não houvesse racismo na seleção dos candidatos às vagas de emprego.
Em resumo: a situação de negros e brancos é desigual e se quisermos remediar isso teremos que dar tratamento desigual. Fingir que a discriminação não existe é hipocrisia, assim como é hipócrita o argurmento de Hélio Schwartsman de que "Cidadãos são cidadãos, não importando se brancos, negros, amarelos ou roxos", pois a muito mais negros do que a brancos é negado o acesso a direitos básicos da cidadania. O argumento de que já existiria uma "igualdade racial", que seria quebrada pela "discriminação" inserida pelos programas de ação afirmativa, é primo irmão daquele que diz que é "meritocrática" a escala social brasileira ("Ricos são ricos por que mereceram, trabalharam muito, pobres são pobres porque não mereceram ser ricos") e tão hipócrita quanto ele.
A sua interpretação foi sim "muito matemática". Se houver apenas uma pessoa na propaganda ela certamente será branca.
E não adianta identificar-se como roxo. Os roxos, assim como os japoneses, não constam como vítimas de uma violência histórica praticada por nosso Estado e nossa sociedade...
PS: Eu achava que já tinha sido aprovado o estatuto...
Links:
Com Ciência - O Brasil negro
PT - Sim ao estatuto de igualdade racial